Eu nunca gostei de mamão.
Aliás eu nunca fui a pessoa da fruta, porém acho chique quem a saboreia com o mesmo entusiasmo que eu devoro um brigadeiro.
Minha mãe adora mamão.
Quando eu era criança, o café da manhã era uma refeição sagrada lá em casa, aos finais de semana todos sentavam a mesa com pão fresquinho, leite, café e frutas. Contávamos sobre a nossa semana, comentávamos as notícias e dividíamos as inquietudes. Minha mãe religiosamente, degustava a metade de um mamão. A outra? Ela teimava em me oferecer e eu, invariavelmente respondia “não mãe, obrigada. Eu não gosto de mamão”. “Prova, vai. Você não sabe o que está perdendo”. “Já provei” (olhos infanto-juvenis revirados e a sensação de ser invisível).
A maturidade chega, e com ela, a conscientização de que eu deveria me esforçar um pouco mais, dar uma chance pro bendito mamão. E assim, ele entrou na minha vida. De mansinho, como quem não quer nada, sempre elegante, trazendo com ele o iogurte e a granola.
Preciso contar que a Dona Vida deu um empurrãozinho a mais. Colocou um mercadinho perto do meu trabalho que todo-santo-dia-salve-salve, exibia na calçada as frutas que em breve seu destino seriam a lata de lixo. O dito-cujo sempre lá. Por dó, acabava carregando-o pra casa. Fui me acostumando a vida com ele. Serei justa, ele não era de todo ruim. Me sentia saudável na sua companhia, e de quebra, havia uma satisfação em deixar minha mãe em paz com minhas escolhas.
Mas… de uns tempos pra cá eu vinha me sentido angustiada por conta de um desses mamões que trouxe pra casa. Há semanas ele está na minha geladeira. Apodrecido, claro. Toda vez que eu dou de cara com ele abandonado na prateleira, desvio o olhar. Me sinto mal. Sinto culpa. Por ter acreditado que o queria. Pelos sonhos divididos. Choro pelo iogurte, e pela granola. Por não ter resistido ao pão. Um caos interno. Preciso avisá-lo que não dá mais. Encaro-o? Jogo-o no lixo? Oferece-o aos passarinhos? Uma voz reverbera “coma o mamão, minha filha, vai melhorar seu intestino”.
A verdade é que minha vida com ele é sem graça. Sei que ele foi bom para mim (e eu pra ele), mas nunca me apaixonei pra valer. Sabe aquela paixão que faz a gente desejar todo dia? Que a gente compra roupa nova para o próximo encontro? Que a preguiça nunca vence? Que dá medo de perder? Que faz você cantarolar? Aquela paixão, que quando acabar (todas acabam) vira um amor tranquilo? Não, não aconteceu.
Queria voltar a ser criança e responsabilizar a Dona Vida! A minha mãe! O mercadinho. Mas, a essa altura do campeonato, sei que a reponsabilidade é só minha. Caio na real que forcei uma barra para introduzi-lo na rotina só porque disseram que era bom, que me faria bem. Eu ouvi o mundo, mas não me ouvi. Essa foi minha responsabilidade. Hoje, sofro as consequências. Meu lado sombrio vem à tona. Sem perceber, o rejeito, trato-o com indiferença. Nos fazemos mal. Não é justo com ele, não é justo comigo. Somos melhores.
Me preparo para o adeus mais difícil e também mais bem-vindo da minha vida. Espero pela coragem. Ela não vem. Torço então para que ela me alcance no caminho. Fecho os olhos, puxo o ar e abro a geladeira, lá está ele. Tiro-o da prateleira e sentamos na mesa da cozinha. Abro meu coração, exponho meus sentimentos e comunico minha decisão. Recebo fúria e raiva. Engulo o choro. Finjo estar forte. Peço desculpas pela dor causada (há muita dor do lado de cá também, acredite). Faço isso por mim, por ele, pelo iogurte e pela granola.
Pergunto ao tempo: “o que fazer?” Ele responde ”apenas deixe-me passar”.
Sábio tempo, com ele entendo que não há espaço para culpa, pois não há crime. Não há vilão e nem mocinha. Que algumas heranças familiares precisam ser analisadas com um olhar atualizado e individual. Que enquanto adultos, temos a liberdade, autonomia e obrigação, de diferenciar o que é seu, e o que é do outro. Que o mamão da mamãe, pode ser bom pra muita gente, mas que eu, eu gosto mesmo é de pão com manteiga.